2.7.04

Qual é a dúvida?

Começa-me a parecer que o factor mais preocupante de toda esta crise é a intrigante atitude do Presidente da República.

As coisas parecem-me a mim relativamente simples ( mas deve ser por isso que não sou eu o Presidente da República).

Segundo me parece, Durão Barroso, numa louvável atitude de inconformismo, arranjou um emprego melhor. Vai daí, para não deixar o Presidente desamparado, foi ter com ele e propôs-lhe como alternativa um rapaz amigo dos tempos da faculdade.

Acontece que Sampaio tem boa memória, e, por isso, reagiu de imediato: «Quem, aquele tipo que o senhor há pouco tempo classificou como um misto de Gabriel Alves e Zandinga? Não pode estar a falar a sério!»

Apostado em assegurar a salvação da pátria, José Barroso (o artista previamente conhecido como Durão) insistiu. Que o Presidente não estava bem informado, que o rapaz se tinha regenerado, que estava uma pessoa irreconhecível, que já não conseguia trair os amigos chegados mais do que uma vez por dia.

Perante tanto entusiasmo, o Presidente respondeu-lhe que ia pensar e José foi dali preparar o discurso de tomada de posse em Bruxelas.

Quando Sampaio, minutos depois, ligou o rádio, ficou a saber que estava tudo combinado entre ele e José, que Lopes seria o novo primeiro-ministro, e que já estava a tratar com o amigo Paulo de escolher os ministros, este entra, aquele sai. Sampaio comentou para a esposa que aquilo não estava bem, que aquilo não se fazia, que afinal aqueles dois continuavam a ser o mesmo par de trampolineiros de sempre.

O passo seguinte foi dizer isso mesmo cá para fora, embora num tom mais polido, porque, ao contrário dos tais, os dirigentes socialistas são usualmente pessoas educadas.

Todos ficámos a pensar que o Presidente entendera a armadilha que lhe estavam a montar e que se decidira a agir em consequência. Mas, afinal, não: em vez de tomar uma resolução, Sampaio decidiu dedicar-se ao seu desporto favorito, chamado «encanar a perna à rã».

As más-línguas pretendem que o Presidente, a quem normalmente ninguém liga, encontrou aqui uma forma de os jornais lhe prestarem atenção por uns dias, mas quem o conhece sabe que ele não é pessoa para isso.

Pergunta-se, então, por que raio suporta ele por mais tempo os comentários impertinentes dos jornalistas empregados do governo e a grosseria crescente dos dirigentes do PPD entretanto reconstruído?

Ao contrário do que se insinua ou diz abertamente, o Presidente tem uma legitimidade própria, ainda por cima adquirida através de uma eleição directa, a única em que os portugueses indiscutivelmente escolhem uma pessoa para um cargo.

A Constituição não obriga o Presidente a nomear ninguém contra sua vontade, muito menos alguém que o próprio proponente publicamente rotulou de Zandinga. Fazê-lo seria, tendo em conta todas estas circunstâncias, pior que uma humilhação, um total contra-senso.

O Presidente é politicamente responsável pelo Governo que empossa, porque é ele que nomeia o seu chefe. Isto quer dizer que se, com a sua passividade, abrir portas à instauração em Portugal de um regime inspirado à Berlusconi, será ele quem de facto deveremos culpar.

Algumas pessoas, too clever for their own good, alvitram que talvez o melhor seja deixar Santana ir para o governo, para que todos possam finalmente ver como ele é. Pobres tolos! Imaginam porventura, que, uma vez que ele lá se apanhe, será fácil apeá-lo.

Santana é um perito na manipulação dos media, e Portas introduziu a política suja em Portugal no tempo do Independente.

Nos últimos dois anos passaram-se em Portugal coisas estranhíssimas, que ainda não se encontram totalmente esclarecidas. O chefe da oposição esteve sob escuta telefónica, e o Presidente da República também, o que mostra como as instituições são frágeis neste país. Sampaio deveria ter aprendido qualquer coisa com isto.

Outra coisa curiosa é que, ao que parece, praticamente todas as pessoas que o Presidente tem ouvido se têm pronunciado no mesmo sentido, a saber, que as eleições antecipadas são a melhor solução para a crise. Além disso, a esmagadora maioria dos comentadores moderados, incluindo os que têm apoiado criticamente o governo, dizem a mesma coisa.

Que espera, então Sampaio? Que receios tem ele? Que riscos o preocupam?

Que riscos pessoais corre, ele que se encontra no segundo mandato e não pode ser re-eleito? Estará preocupado com a imagem que deixará para a história?

E que imagem quer ele deixar para a história? A de um homem que, para sublinhar bem a sua isenção e sentido de Estado, abriu o caminho ao populismo e à subversão generalizada dos princípios da sã convivência democrática dura e penosamente introduzidos ao longo dos últimos trinta anos?

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