12.1.04

Isto não se faz



Calhou ontem eu assistir, uma vez sem exemplo, ao número semanal de Marcello no Cabaré da Coxa da TVI.

A contemplação daquele festival de trejeitos, pantominas, caretas, risinhos, piscadelas de olho e tiques diversos, daquela linguagem gestual exuberante que se orgulha do seu excesso levou-me por um momento a pensar que estava a ver um filme com aquele actor americano que dá pelo nome de Jim Carrey.

Mas o Jim Carrey não se dá aqueles arzinhos superiores de eterno menino prodígio contente consigo mesmo. Não exibe aquele verbo destravado de vendedor de feira. Não tem aquela capacidade para desfiar lugares comuns travestidos pelo tom grandiloquente do discurso em verdades profundas.

O que se passa aqui é um espectáculo cruel de psicoterapia em directo e ao vivo. O pobre professor chega ao estúdio, arrasado por anos a fio de noites mal dormidas (ao que se diz, deita-se às sete e acorda sistematicamente às seis). O médico disfarçado de apresentador convida-o a deitar-se no divã. Ele responde prontamente: «Não, deixe estar, muito obrigado, eu fico bem sentado». E, desata a expor sem peias, perante uma plateia de milhões de portugueses, todas as angústias que lhe vão na alma.

Isto é uma crueldade, isto não se faz! Expor assim os fantasmas íntimos de um homem bom ao escárnio da populaça é levar longe de mais a guerra das audiências. Preocupados como andamos com os abusos de que são vítimas os menores, não cuidamos hoje adequadamente de proteger certos adultos manifestamente fragilizados pela dureza da vida quotidiana.

(Confesso, com alguma vergonha: eu faço parte daquela minoria (aparentemente ínfima) de portugueses absolutamente insensíveis aos encantos do professor Marcello. Marcello a caminho de Belém? Não seria mais adequado o Circo Chen?)

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