8.1.04

Sobre a reforma da administração pública


Burocratas assírios


Numa outra encarnação, também eu fui funcionário público e, sabem que mais?, nessa altura já havia gestão por objectivos e avaliação de mérito no organismo onde eu trabalhava.

Porque se terão então perdido pelo caminho esses bons hábitos?

O segredo é este: os partidos políticos dominantes resolveram que a administração pública não tem que ser tecnicamente capaz, mas apenas obediente. Vai daí, há coisa de uma década e meia (ou seja, no tempo de Cavaco Silva), os directores gerais prestigiados começaram a ser substituídos por criaturas inenarráveis, cuja única função é existirem. A isto se reduz o seu significado ontológico: esses são aqueles que são.

Como, apesar de tudo, é preciso que alguém trabalhe, os ministros rodearam-se de gabinetes cada vez mais numerosos de assessores que, pior ou melhor, vão dando conta do recado. (Note-se que, neste como noutros aspectos, o guterrismo foi apenas a continuação do cavaquismo por outros meios.)

O actual governo deu mais um passo no sentido da institucionalização deste sistema ao criar as Unidades de Missão. Note-se que, por vezes, estes gabinetes não só não funcionam mal como fazem muito trabalho de alta qualidade. O problema é que, não se atacando o problema de fundo--ou seja, a transformação da administração pública numa estrutura capaz e eficiente--criaram-se dois aparelhos de estado paralelos que quase não comunicam entre si, com todo o desperdício que um tal dualismo implica.

A base da pirâmide apodreceu quase por completo: a administração pública é hoje uma ficção, em cuja existência só os jornalistas e comentadores de serviço parecem acreditar.

Queixam-se os apoiantes do actual governo de que, no actual sistema que impera na função pública, não é possível premiar o mérito. Talvez, mas também ninguém os obriga a premiar a mediocridade, como todos os dias fazem.

A solução de um problema--a saber, a ineficiência da administração pública--deve começar por um correcto diagnóstico das suas causas. De outro modo, teremos apenas soluções à procura de problemas, como é esta de pôr chefes que ninguém respeita a avaliarem o mérito de pessoas dedicadas e capazes.

Diz-se que os princípios da reforma da administração pública são consensuais e que só está em causa o modo como serão aplicados, mas isso só me confirma na ideia de que nem o governo nem a oposição sabem do que está a falar.

O que eu queria era que os principais partidos se comprometessem a alterar a prática de substituir os quadros superiores da administração pública quando ganham as eleições a pretexto de que necessitam de provê-los com gente da sua confiança política.

Porque esse argumento é absolutamente indefensável e está a conduzir lenta mas seguramente à destruição do aparelho de estado, cujo prestígio e fiabilidade é condição base do funcionamento de qualquer regime democrático.

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