29.5.04

O milagre de Salomé

Mais vale experimentá-lo que julgá-lo - dizia um tipo estranhamente nascido em Portugal. Por isso, vão ver primeiro e julguem depois.

Sobretudo, desconfiem daqueles que apressadamente classificam como "comercial" qualquer filme que denuncie um mínimo de oficina.

Dito isto, confesso que, à saída, dei por mim a pensar que o resultado final poderia ser bem melhor. Quero eu com isto dizer que, em vez de um bom filme poderíamos ter aqui um excelente filme.

Suspeito - suspeito, apenas - que sei o que falhou.

O argumento de "Salomé" (não falo do original de Miguéis que não conheço) é um misto de comédia de costumes, intriga política, sátira religiosa e drama passional, tudo embrulhado de uma forma despretensiosa, o que lhe confere um charme peculiar.

Os cambiantes da intriga recomendariam por isso, ao nível do tratamento cinematográfico, frequentes mudanças de registo, com o que o filme ganharia movimento e interesse.

Em vez disso, o tom é notavelmente homogéneo do princípio ao fim, de modo que o humor de certas situações nunca
é completamente assumido, tal como o não é a tragédia de outras.

Os ambientes são quase sempre fechados e soturnos (excepção: a cena da praia), mesmo quando as situações são festivas. Penso, por exemplo, na festa de apresentação de Salomé à sociedade, em casa do capitalista.

Tendo em conta o discernimento e a competência demonstrados pelo realizador, creio que essas falhas resultam das limitações orçamentais da produção.

A casa do protector novo rico de Salomé é claramente inadequada à história. Assim, o salão onde tem lugar o baile é acanhado e escuro, mal cabem lá uma orquestra minúscula e meia dúzia de dançarinos. Em geral, o palácio, decorado de uma ponta à outra com azulejos pesados e madeiras escuríssimas, não corresponde de forma alguma ao gosto descomplexado manifestado pelo seu proprietário em diversos momentos da história.

Suspeito que o realizador, cujo bom gosto é evidente, não terá podido utilizar o cenário doméstico que mais lhe agradaria.

Fora de portas o problema agrava-se. Os cenários utilizados respeitam muito razoavelmente o enquadramento histórico. Simplesmente, como a verba é escassa, a realização abusa de planos fechados que conferem ao filme um tom algo claustrofóbico.

Paradoxalmente, este interesantíssimo primeiro filme de um fotógrafo de cinema falha essencialmente pela luz.

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