Um administrador de uma das maiores e mais antigas seguradoras portuguesas mostrou-me certa vez o primeiro livro de registos da empresa, datado dos anos 30 do século XIX e guardado numa vitrina da sala de reuniões do Conselho de Administração.
O terceiro lançamento respeitava ao seguro de um carregamento de escravos.
Lembrei-me nesse momento que, segundo certos historiadores, muitas das grandes fortunas europeias têm uma origem mais ou menos longínqua em actividades ligadas à escravatura.
Não é difícil acreditar nisso, tendo em conta que o esclavagismo foi a mola real da plantação e transformação do açúcar, das sementes oleaginosas, do algodão, do cacau, do café e do chá, mas também da extracção do ouro, da prata e do cobre. Para além disso, esse sistema de produção mundializado impulsionou o comércio marítimo a distância tanto de escravos como dos bens por eles produzidos, bem assim como múltiplas actividades comerciais e financeiras.
Se o esclavagismo desempenhou genericamente um papel tão importante nas economias europeias, que dizer então de Portugal?
O império marítimo português foi um dos maiores - se não o maior - império esclavagista da história, a começar pelo mercado de escravos criado no Algarve pelo Infante D. Henrique (após uma interdição de mais de mil anos eficazmente imposta na Europa pela Igreja) e a acabar com o trabalho forçado que ainda nos anos 50 do século passado subsistia em Angola (mais de cem anos depois da sua abolição oficial).
O pedido de desculpas pelos crimes da escravatura que Joaquim Chissano recentemente exigiu a Portugal não vem a propósito de nada, razão pela qual não gastarei tempo a discuti-lo.
Mas talvez seja uma boa altura para fazer notar que faz falta em Portugal uma consciência mais aguda do nosso passado nessa matéria, tanto mais que o assunto é sistematicamente ignorado ou desvalorizado no ensino da nossa história.
Os portugueses não sabem, ou não querem saber, o peso absolutamente decisivo que o esclavagismo teve no seu viver colectivo ao longo de mais de cinco séculos. Curiosamente, nem sequer nas discussões sobre a originalidade da identidade lusitana que ciclicamente nos entusiasmam lhe é atribuída alguma relevância.
E, no entanto, os tiques e perversões típicos de uma sociedade marcada pelo esclavagismo continuam a impregnar o nosso dia a dia.
As classes dirigentes confundem decidir com mandar, são incapazes de motivar homens livres e pensantes, dão preferência a mão-de-obra desqualificada e mal paga, não estão habituadas a auscultar o sentimento dos de baixo, valorizam acima de tudo a obediência cega, confiam na força em detrimento da cultura e não sabem assumir riscos. Pensam como negreiros.
Os de baixo, em contrapartida, encaram o trabalho como uma indignidade ou uma humilhação, não acreditam na realização profissional, usam de mil truques para defraudar o patrão, acreditam que o esforço não lhes trará qualquer vantagem, recusam-se a aprender, privilegiam o desenrascanço, alimentam-se do ressentimento e sonham toda a vida com a reforma. Pensam como servos.
Colectivamente, os portugueses não são solidários, ambicionam ganhar a lotaria ou dar o golpe do vigário (dado que em Porugal nunca se viu ninguém enriquecer doutra maneira), aplicam todo o seu engenho em sacar esmolas, acreditam que o bem-estar colectivo é uma balela para enganar os tolos, desconfiam de ideais ou grandes princípios, pensam que um curso superior é apenas um expediente para arranjar um bom emprego, consideram os políticos e os empresários uma cáfila de gatunos e não duvidam de que o Estado está a mando dos patrões.
Dizer isto não resolve nada? O primeiro passo para superarmos este quadro mental consiste em compreendermos que ele não encerra nenhuma fatalidade. Não é a manifestação de uma imutável alma nacional, mas o resquício de condições de vida que duraram séculos e deixaram marcas, mas que pertencem irremediavelmente ao passado.
É neste sentido que o conhecimento da história, fornecendo-nos uma explicação racional para os atavismos que nos tolhem os movimentos, nos liberta do peso do passado e nos permite encarar com confiança outros caminhos.
Se, hoje, teimarmos em comportarmo-nos como escravos, será por escolha e não por destino.
20.2.05
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