Se observarem com muita atenção as fotos do funeral de Cunhal publicadas na imprensa, vão reparar que eu não me encontro lá no meio da multidão. Aliás, faço notar que não é a primeira vez que isso acontece.
Cá para o meu gosto, Cunhal foi um mau desenhador e um mau escritor. Dedicou-se na vida a muitas coisas, mas fê-las quase todas mal. Numa certa perspectiva, foi aquilo a que com toda a propriedade se chama um falhado.
E, no entanto, de há uns anos a esta parte, eu deixei de conseguir detestar Cunhal. Percebo que outros - como Vasco Pulido Valente, que se queixa de ter sido desleixado pelos pais na sua infância por causa do «Álvaro» - sintam diferentemente. Mas a mim, essa pessoa já quase não me desperta emoções.
Porque ele mudou, porque eu mudei, porque o mundo mudou, porque eu não sou dado a ressentimentos? Por tudo isso, e por muito mais.
Quando olhamos o céu, contemplamos estrelas que morreram há milhões de anos. Quando nos dão a ver as imagens do cortejo fúnebre de Cunhal, o tempo recua subitamente algumas décadas e somos contemporâneos de uma era definitivamente enterrada.
É por isso que eles choram, os manifestantes. Choram o seu passado, a sua juventude, os seus sonhos, as suas ambições perdidas. Choram as suas mortes, não a dele. É por elas que os sinos dobram.
Fiquemos então assim. Concordemos todos que Cunhal foi um grande português, e deixemos a cada um o cuidado de decidir o que, neste caso concreto, a palavra «grande» quer dizer.
17.6.05
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