17.6.05

Por quem os sinos dobram

Se observarem com muita atenção as fotos do funeral de Cunhal publicadas na imprensa, vão reparar que eu não me encontro lá no meio da multidão. Aliás, faço notar que não é a primeira vez que isso acontece.

Cá para o meu gosto, Cunhal foi um mau desenhador e um mau escritor. Dedicou-se na vida a muitas coisas, mas fê-las quase todas mal. Numa certa perspectiva, foi aquilo a que com toda a propriedade se chama um falhado.

E, no entanto, de há uns anos a esta parte, eu deixei de conseguir detestar Cunhal. Percebo que outros - como Vasco Pulido Valente, que se queixa de ter sido desleixado pelos pais na sua infância por causa do «Álvaro» - sintam diferentemente. Mas a mim, essa pessoa já quase não me desperta emoções.

Porque ele mudou, porque eu mudei, porque o mundo mudou, porque eu não sou dado a ressentimentos? Por tudo isso, e por muito mais.

Quando olhamos o céu, contemplamos estrelas que morreram há milhões de anos. Quando nos dão a ver as imagens do cortejo fúnebre de Cunhal, o tempo recua subitamente algumas décadas e somos contemporâneos de uma era definitivamente enterrada.

É por isso que eles choram, os manifestantes. Choram o seu passado, a sua juventude, os seus sonhos, as suas ambições perdidas. Choram as suas mortes, não a dele. É por elas que os sinos dobram.

Fiquemos então assim. Concordemos todos que Cunhal foi um grande português, e deixemos a cada um o cuidado de decidir o que, neste caso concreto, a palavra «grande» quer dizer.

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