1.11.06

Um breviário



Há dias, comprei nuns saldos a colectânea "Outra Opinião: Ensaios de História", do historiador tablóide Rui Ramos.

Dei o meu dinheirinho por bem empregado, porque aprendi imensa coisa.

A esquerda governou quase ininterruptamente o país desde o final da guerra civil, em 1833, até à Revolução de 28 de Maio de 1926. Durante todo esse período, "o povo, desconfiado de um estado professoral e intrometido, não ia às escolas, faltava às eleições, resistia ao cumprimento dos deveres fiscais e militares, e insistia em manter-se fiel àquilo que, para os liberais, eram 'superstições' e 'fanatismo religioso'".

Dezasseis anos depois de "a 5 de Outubro, os republicanos portugueses [terem derrubado] um regime que honrava os princípios do Estado de Direito e representativo", Portugal estava maduro para cair nos braços de Salazar, que não era propriamente de direita: "a missão das direitas, cujos partidos também estavam proibidos, era singelamente a de o apoiar".

"Não havia muita liberdade, é certo, mas também não a tinha havido no tempo do PRP." Havia repressão, é verdade, mas temos que nos lembrar que a política europeia da época também era muito violenta. Salazar era um crítico acerbo do liberalismo e da democracia, mas o que tinha em mente era o entendimento que os republicanos portugueses faziam desses conceitos.

O que mais o motivava era o confronto civilizacional contra o comunismo. Se ele se tivesse retirado do poder em 1945 é muito provável que fosse hoje um ídolo da esquerda, mas o país teria caído na guerra civil. Quase tudo o que ele fez era inevitável. Por exemplo, se não houvesse salazarismo teríamos tido guerra colonial à mesma.

O 25 de Abril não teve como propósito instaurar um regime democrático-liberal, mas apenas voltar a entregar o poder à esquerda. Por oportunismo, os chamados partidos de direita têm infelizmente pactuado com esta situação.

O herói do autor é Sá Carneiro. Ao contrário de todos os outros políticos portugueses sem excepção, era guiado por um projecto impoluto de liberdade que prosseguia sem tibiezas nem cedências. Infelizmente, o falecimento prematuro desse D. Sebastião retrospectivo nunca nos permitirá tirar a limpo se teria podido conservar a sua pureza ideológica após 1980. Ramos está convencido que sim, visto que, no almoço de 4 de Dezembro de 1980, Sá Carneiro explicou o seu plano:
"Ia deixar o governo aos dirigentes apolíticos do PSD. Dava-lhes um ano até eles se 'espetarem'. Depois, formaria um novo partido, juntando os militantes do PSD e a direcção do CDS. Então, voltaria ao ataque. De facto, como ele tinha previsto, eles 'espetaram-se'. Mas ele já não estava lá."
Se vocês acham que este homem era um aventureiro, estão errados. Sá Carneiro era portador do único projecto genuíno de liberdade que nestes últimos trinta anos foi proposto aos portugueses.

Confesso que estou exausto. Um homem não aguenta mais do que uma certa dose de desmistificação de cada vez, e isto excede claramente a minha modesta capacidade.

Reconheço, todavia, que aprendi muita coisa. Neste livrinho reconheci o breviário inspirador de muito blogue, muita opinião publicada e alguma revista que por aí circula. Por outro lado, é curioso - mas pouco tranquilizador - que este dogmatismo torrencial seja produzido por um historiador profissional, do qual, imagino eu, seria de esperar uma abordagem mais escrupulosa e nuanceada dos factos.

Bendita a pátria que tais historiadores dá ao mundo.

PS - A exemplo de outros historiadores, Rui Ramos fulmina constantemente o anti-clericalismo da 1ª República. Se o anti-clericalismo foi um fenómeno tão importante como parece ter sido, eu esperaria que alguém tivesse a amabilidade de gastar também algumas páginas a contar-nos o que foi o clericalismo. Será pedir de mais?

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