8.9.03

A careca de Heidegger. A descoberta de Auschwitz no final da II Guerra teve, entre outras consequências, a de o nazismo ter sofrido uma condenação final e definitiva, como se, face àquele horror, quaisquer palavras fossem supérfluas.

Não há nada a lamentar nisso, excepto talvez o facto de o processo da ideologia nacional-socialista ter ficado incompleto. A imagem última de Hitler e seus seguidores é a de uma trupe de carniceiros paranóicos cujo comportamento releva mais da insanidade mental do que da política. Os filmes americanos que depois vimos durante décadas contribuiram para fixar o retrato dos nazis como um bando de idiotas sedentos de sangue. E ponto final.

O lado negativo deste processo de diabolização é que, à sucapa, o movimento de ideias que abriu caminho à chegada de Hitler ao poder sobreviveu relativamente incólume, talvez porque se presume que uma seita de criminosos não pode ter um verdadeiro pensamento. Em consequência disso, as pessoas ignoram ainda hoje o verdadeiro alcance das obras de pensadores e artistas como Carl Schmitt, Ernst Junger, Martin Heidegger e Leni Riefenstahl, para apenas mencionar alguns.

Heidegger, particularmente, apesar de sempre ter recusado retratar-se e condenar explicitamente o nazismo, inspirou correntes importantes da filosofia no pós-guerra, a mais curiosa das quais foi aquela que, por via de Foucault, Lacan e Althusser influenciou directamente uma parte das ideias esquerdistas dos anos 60.

Acontece que, há dias, o Caminhos Errantesretomou a historieta segundo a qual Heidegger teria sido vigiado pela polícia do regime depois de 1935. É preciso que se saiba que essa fábula, posta a correr pelo próprio Heidegger, não tem qualquer fundamento. E, embora seja verdade que ele criticou o biologismo em conferências então realizadas, não o fez por por causa das suas eventuais consequências racistas, mas porque era contra a biologia, como, aliás, era contra todas as ciências.

Num comentário certeiro a esse post, Pedro Mexia referiu-se criticamente a Heidegger, Schmitt e Junger como más companhias a evitar. Replicou Alexandre Sá, entre outras coisas, que eles não têm ideias políticas comuns, o que só pode ser entendido como uma anedota, tendo em conta que essa tríade produziu em conjunto o essencial das ideias políticas nazis. É um facto que Junger, o diletante autor do principal manifesto do totalitarismo, se dissociou do nazismo mais tarde com toda a clareza, nunca tendo embora rompido com Heidegger. E é verdade que Heidegger, depois de abandonar o reitorado da universidade de Friburgo, não voltou a ocupar cargos públicos; mas isso apenas porque os seus amigos das SA foram massacrados na noite das facas longas. Quanto a Schmitt, nunca abjurou das suas ideias.

Por conseguinte, embora tenham seguido caminhos diferentes, e haja diferenças marcantes entre eles, no momento decisivo estiveram juntos do mesmo lado da barricada e contribuiram activamente para o triunfo de Hitler. As motivações pessoais podem ter incluido uma boa dose de vaidade e oportunismo, mas não restem dúvidas de que a convicção também esteve presente.

É mais do que altura de abordarmos estes assuntos com mais sentido de responsabilidade, o que implica uma atitude de desconfiança em relação aos escritos desta gente.

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