Hoje é dia de bola. Aqui há uns anos, ao ser-me apresentado um administrador de uma grande empresa portuguesa, um amigo comum recomendou-me como sendo adepto do mesmo clube que ele.
Diz-me o sujeito: «Para falar verdade, eu nem gosto muito de futebol. Mas, como me sentia marginalizado às segundas-feiras quando toda a gente no escritório discutia os golos e as arbitragens da véspera, comecei a ir ao estádio com o meu filho, para ver se quebrava o isolamento».
O pobre homem, para não ser ostracizado pelos seus pares, tinha que submeter-se regularmente a um sacrifício ritual para ver se conseguia ser aceite pela tribo do futebol. Quem não aprecia o futebol nem é homem nem é nada. Pior: é objecto da desconfiança generalizada dos outros machos.
Durante muitos anos, acreditei haver na vida coisas mais importantes do que o futebol. Quando, finalmente, despertei do meu sono dogmático, vi claramente vista a profundidade do meu erro.
Hoje em dia, quando alguém afirma que não gosta de futebol, deduzo imediatamente que deve ter um parafuso a menos. Parafraseando a letra de um conhecido samba: «Quem não gosta da bola/ bom sujeito não é/ é ruim da cabeça/ ou doente do pé».
Só há uma coisa pior do que não gostar de futebol: não ser adepto de um clube de futebol. Um sujeito sem filiação clubística é um homem só, sem lealdades, um egoísta, um autista fechado sobre si mesmo. Homens assim, não duvidem, são perigosos.
O futebol é, para milhões de pessoas, o principal, senão mesmo o único, factor de de socialização. Se não fosse o futebol, de que falariam essas pessoas umas com as outras?.
A observação do “fenómeno desportivo” diz-nos praticamente tudo o que precisamos de saber sobre o estado do mundo. Por exemplo, quando começaram a aparecer em Portugal muitos jogadores russos, búlgaros, húngaros, sérvios e romenos, nós fomos obrigados a meditar sobre a derrocada do comunismo soviético. A bem dizer, nem é preciso ver os telejornais ou consultar jornais e revistas para saber o que se passa no planeta.
Mas, além disso, o futebol eleva-nos também às mais altas esferas do espírito, pois que, hoje, é através dele que as pessoas tomam contacto com as grandes questões do Universo, tais como o sentido da vida, o Bem e o Mal, etc. Uma leitura atenta dos jornais desportivos comprova-o sem margem para dúvidas.
Antigamente, dizia-se que o futebol era uma alienação. Essa tese foi mais uma vítima da queda do Muro de Berlim, visto que, se a alienação é um conceito com vestígios de marxismo, quem não gostar de futebol será forçosamente suspeito de estalinismo.
Assim, uma das consequências inesperadas da decadência do marxismo foi a proporcional elevação do estatuto do futebol enquanto actividade cultural. O intelectual da bola está hoje em toda a parte, nas colunas de opinião dos jornais de referência, nos debates televisivos, nas universidades ou, quem sabe, nas eleições presidenciais, caucionando desse modo com a sua benção esse inocente entretenimento popular.
Deve ser por isso que alguns eminentes bloguistas, pessoas usualmente sensatas e inteligentes, não só se desviam do seu caminho para escrever tolices sobre o último Porto-Benfica, como rapidamente perdem a compostura com assuntos de tão indiscutível relevância.
Eu percebo o sentimento clubista, e até o partilho, mas nunca comprei jornais desportivos, que só conheço do barbeiro, nem tenho usualmente paciência para conversas sobre futebol, não porque negue à partida que possam ser interessantes, mas porque os participantes daquelas a que tenho assistido percebem tanto do assunto como de cricket.
A paixão clubista, como qualquer forma de amor, tem de exprimir-se, compreendo-o bem, de formas ridículas. Se não fosse assim, não seria amor.
Mas convém não exagerar. E há sempre uma alternativa, quando todas as formas de expressão nos parecem inadequadas: seguir o conselho de Wittgenstein, segundo o qual o que não pode ser dito deve ser silenciado.
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