11.9.03

Um testemunho. No restaurante, um homem que eu só conhecia de subir às vezes com ele no elevador do prédio onde ambos trabalhávamos virou-se para trás, com um telemóvel colado ao ouvido, e disse-nos: «Em Nova Iorque, um avião chocou com um arranha céus».

Na minha mesa, o rumo da conversa mudou logo para agarrar este novo tema. Como era possível uma coisa destas? Eu lembrei-me de que, há uns sessenta anos, um avião chocou com o Empire State Building e disse-o. Acrescentei que o choque não afectou a estrutura do edifício e só morreu o piloto.

A conversa tomou outro rumo. Depois do almoço, por volta das duas, subimos para o escritório. Ao entrar, encontrámos uma pequena multidão na sala de reuniões a acompanhar as notícias na televisão. Fomos espreitar e vimos a imagem de um avião a chocar com uma torre. «Isto não pode ser acidente. O céu está limpo e, mesmo que o avião tivesse uma avaria, conseguiria provavelmente evitar a torre».

Fui para uma sala de reuniões mais pequena ao lado. Ao fim de uns minutos interromperam-nos para dizer que um segundo avião chocara com a outra torre. Fomos ver. Falava-se de um atentado terrorista. O Zé disse: «Isto é coisa da Mossad. Só os israelitas têm a ganhar com isto». Fiquei a olhar para ele, e pensei: «Isto vai mesmo ficar feio». Fui para o meu computador e tentei obter mais informações pela internet, mas estava tudo bloqueado. Chega a notícia de um terceiro ataque, este sobre o Pentágono. Agora não havia dúvidas sobre o que estava a passar-se. Falava-se de um quarto avião que estaria a dirigir-se para a Casa Branca.

Nas Torres em chamas havia pessoas a atirarem-se para a rua. Mais algum tempo, e uma das torres desaba, criando pânico e confusão nas ruas circundantes. Depois cai a Segunda. Daí a bocado começou a falar-se da Al-Qaeda e de Bin Laden.

As imagens dos aviões a chocar com os edifícios são transmitidas e retransmitidas ad nauseam, de todos os ângulos possíveis, até todos as termos gravadas na retina. Os comentaristas começam então a tomar conta do espaço mediático.

Diz-se que o mundo nunca mais vai ser igual. Duvido. Acredito mais que as grandes transformações resultam de pequenos acontecimentos a que, na altura, ninguém prestou muita atenção. Mas não tenho dúvidas de que muita coisa vai acontecer.

Decido começar a escrever um diário, para registar minuciosamente os acontecimentos e as minhas reacções a eles. Mas não cumpro à risca esse propósito. Limito-me a tomar notas num pequeno bloco que trago sempre comigo, dando continuidade a um hábito que criei nos últimos três anos. A maior parte dos meus registos nem sequer são sobre política, escrevo sobre o que me vem à cabeça ou me faz pensar. Já este ano converti-me aos blogues que, correndo eu sempre o risco de ser lido por alguém, me impõem uma maior disciplina intelectual.

Impressiona-me a rapidez na identificação dos culpados, uma seita de maltrapilhos fanáticos que, acoitados nas montanhas do Afeganistão, o único país do mundo que não dispõe de um só quilómetro de via férrea, prometem submeter o mundo à vontade do Profeta. Inaugura-se uma era de desorientação dos espíritos que ninguém sabe onde poderá levar.

A grande mudança operada no 11 de Setembro parece-me ser esta: antes dessa data, todos nós tínhamos um sentido razoavelmente apurado da realidade. Sabíamos que certas coisas acontecem nos filmes, mas não na vida real. Distinguíamos (ou julgávamos distinguir) sem qualquer dificuldade os efeitos especiais da coisa verdadeira. Há coisas, evidentemente, que só acontecem nos filmes do James Bond.

Agora, depois daqueles espantosas cenas dos aviões a chocarem com as torres, já não sabemos o que pensar. Tudo pode ser verdade, e tudo pode também ser mentira. A começar logo por essa inenarrável personagem que dá pelo nome de Bin Laden, e que, apesar de parecer saída de um daqueles filmes beras de guerra, ninguém põe em dúvida que exista, apesar de nos aparecer sempre sob a forma de umas gravações de video de má qualidade com uma banda sonora para esquecer. Cá para mim, é uma personagem tão real como o Rato Mickey. Além disso, se existe, deve ser parecido com aquele infeliz que costumava passar os dias no Rossio, armado de uma megafone, a anunciar a iminência do fim do mundo e da vinda do Salvador. Como pode um cromo desses arrastar gente atrás de si?

Nas televisões, vemos uns quantos árabes (não mais de uma dúzia) a dançar de alegria. O comentador assegura-nos que essas imagens traduzem o sentimento de todo o mundo muçulmano. A interpretação delirante vai muito para além do que as imagens objectivamente revelam, mas está armado o cenário para a paranóia anti-islâmica.

Bush declara guerra contra os cobardes ataques terroristas e acrescenta que quem não está contra a América está contra ela. Um jornalista americano é despedido por duvidar que o adjectivo «cobarde» seja o mais adequado para qualificar os ataques, dado que os terroristas que íam a bordo sacrificaram as suas vidas.

Todo o mundo está em estado de emergência. Militares e polícias ocupam todos os lugares estratégicos e, antes de mais, os aeroportos. Já vi isto num filme, aliás mauzito, mais uma prova de que, agora sim, a realidade imita a ficção. Temem-se novos ataques terroristas, que não se confirmam, mas entretanto começa a cena do envio de antrax pelo correio, episódio até nunca esclarecido que lança o pânico nos EUA.

O Governo americano lança um ultimato aos taliban para que entreguem Bin Ladem, senão...

Eu deveria ter viajado para os EUA poucas semanas depois do 11 de Setembro. Mas isso dependia de terceiros que, após uma atitude inicial muito macha, recuaram à última hora e adiaram tudo. Acabei por partir só no dia 1 de Março de 2002.

Quando o avião se aproximou de Nova Iorque, toda a gente espreitou pelas janelas tentando ver o que, precisamente, já não podia ser visto. Reencontrei em Nova Iorque a energia habitual que caracteriza a cidade, embora as pessoas que lá vivem notem que há mais relutância em frequentar os locais públicos. Aqui e além, em locais de maior passagem de peões como, por exemplo, as estações de comboios, encontravam-se comoventes memoriais a familiares e amigos, pequenos altares que perpetuam uma memória. As pessoas continuavam a parar aí para ver, ler e meditar. Tenho que confessar uma coisa horrível: se os terroristas tivessem optado antes por atacar outra cidade (Los Angeles, por exemplo) eu não me sentiria tão chocado. Mas quem faz mal a Nova Iorque faz-me mal a mim.

Dois dias depois apanhei o comboio Amtrak para Washington, que me abriu os olhos para uma América que eu ainda não vira, a dos bairros miseráveis dos subúrbios das grandes cidades que bordejam a linha do comboio. Casas meio arruinadas, ruas esburacadas, meninos negros semi-nus a brincar no meio do lixo, e isto em extensões a perder de vista. Na Europa já nem sequer em países relativamente pobres como Portugal topamos com estas situações em tão larga escala. A América não quer saber dos pobres, sejam eles nacionais ou estrangeiros, isso é ponto assente. Bem vistas as coisas, é como se sofressem de uma doença ou, pior ainda, estivessem a expiar um pecado qualquer que cometeram. É isso mesmo: se és pobre, alguma coisa hás-de ter feito para o merecer.

No comboio, o revisor, um tipo negro simpático que trata toda a gente por folks, mete-se com os passageiros e põe toda a gente a rir. É nisto que se vê o extraordinário espírito igualitário americano: o revisor é intrinsecamente igual aos passageiros, por isso pode brincar com eles sem, em nenhum momento, ser mal-educado. Não concebo uma coisa destas, nem em Portugal nem na maioria dos países europeus.

Em Washington vou encontrar uma situação de manifesta e chocante segregação racial. Os negros daqui (e, soube-o depois, também os de Filadélfia ou de Baltimore, por exemplo) não têm nada a ver com os de Nova Iorque. São seres marginalizados e carentes de auto-estima, de aspecto pouco cuidado e macambúzio, que se movem como sombras. Embora representem dois terços da população da cidade, quase só ocupam profissões menores.

No dia mais frio do ano (foi o que me disseram) percorri surpreso o gigantesco parque temático de inspiração militarista que é o centro (histórico?) de Washington: monumento à guerra da independência (memorial de Washington); monumento à guerra civil (memorial a Lincoln); memorial à guerra da Coreia; memorial à guerra do Vietname; memorial, então em construção, à II Guerra Mundial; cemitério militar de Arlington. Não fossem os (magníficos) museus do Smithsonian, e só haveria memórias de guerra para ver.

Em todo o século XX, só dois presidentes americanos não declaram guerra a alguém. Dizia Kennedy, ao enviar os primeiros conselheiros americanos para o Vietname, que os únicos presidentes que ficam na história são os que ganharam uma guerra. Os EUA vivem em permanente mobilização contra um qualquer inimigo. Quando, estranhamente, não há nenhuma guerra convencional, lança-se uma guerra contra o terrorismo, por absurda que a expressão seja (um oxímoro, para ser preciso). Se nem isso for possível, serve uma guerra metafórica contra o álcool, contra a droga ou contra o tabaco. O estado de guerra permanente parece ser uma condição indispensável para manter o país unido.

De resto, eles não falam dos EUA como um país, mas sim como uma «nação», uma coisa ridícula num país composto de tantas nações que, aliás, nunca desistem de o ser: gerações depois de chegarem à América, os americanos continuam a considerar-se italianos, gregos ou irlandeses; simplesmente, à antiga identidade sobrepõe-se uma outra que a complementa sem a anulas. Acho esta convivência pacífica de múltiplas identidades uma excelente ideia e um exemplo para os povos de todo o mundo. Os europeus, em particular, têm muito a aprender com isto.

Ao mesmo tempo, isto tem um preço: uma identidade nacional muito frágil que, na ausência de um inimigo externo, ameaça esboroar-se. Não se deixem iludir pelos sinais exteriores de patriotismo, tais como a devoção agressiva ao hino e à bandeira; em minha opinião, aqui como noutros países, esse apego aos símbolos apenas trai insegurança. Os países verdadeiramente coesos como, por exemplo, a Holanda ou Portugal, não ligam muito a essas trivialidades.

Isto leva-nos a outro problema, que é o do peculiar estatuto da direita neste país. Os EUA são, na verdade, uma democracia incomparável, em muitos aspectos exemplar. Ao escrever isto, estou a pensar na democracia não apenas como um sistema político, mas como um sentimento, uma forma de viver e de relacionamento entre as pessoas. Se a palavra não estivesse irremediavelmente queimada, eu chamar-lhe-ía uma democracia popular. Em nenhum sítio como aqui é tão permanentemente manifesta a presença do elemento popular como algo com uma legitimidade cultural idêntica à da aristocracia na Europa, continente onde o povo ainda é objecto de uma desconfiança sistemática por parte das classes cultivadas.

Numa sociedade democrática consolidada e evoluída como esta, a direita vive em permanente humilhação, em estado de alerta, em desassossego. Por isso, ela manifesta-se aqui, de uma forma particularmente extrema, como aquela aliança entre os privilégios e a ignorância que é em toda a parte a sua estratégia essencial desde que triunfou o sufrágio universal.

Um acontecimento como o 11 de Setembro, ao colocar a população em estado de choque, é a oportunidade ideal para essa direita passar ao ataque tanto interna como externamente. O medo é o ambiente de que ela se alimenta para subverter regras de convivência política nacional e internacional construídas ao longo de décadas. O pretexto, a ideia de que, se o terrorismo põe em causa o modo como o mundo estava organizado, ainda precisamos de instituições políticas musculadas para lhe fazer frente.

Parafraseando, por uma vez, George Bush: «Make no mistake about it.» Esta direita com que agora temos que nos haver de Haider a Portas, de Berlusconi a Rumsfeld, não tem nada a ver com aquela a que estamos habituados. Não é conservadora nem neo-conservadora, é radical e revolucionária.

Dois anos depois do 11 de Setembro, a invencível brigada da estupidez está de regresso.


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