3.12.04

O partido sem qualidades

Militantes destacados de um partido que realizou há duas semanas o seu congresso para confirmação do novo líder apelam seriamente à realização de um congresso extraordinário para eleger um outro líder.

Que razão justifica esta reviravolta? Há duas semanas, o novo líder tinha que ser eleito porque assegurava o poder ao partido. Agora tem que ser substituído por outro porque assegura que o partido perderá esse mesmo poder.

A única vocação e ideologia do PSD é a vontade do poder. Ele é o partido das forças vivas que passam o poder de pais para filhos, atravessando séculos e regimes sem sobressaltos de maior.

Já teve muitos nomes. Em vésperas do 25 de Abril separou-se da União Nacional mesmo a tempo de poder aparecer do lado de cá do antigo regime de cara levada e nova designação.

Dizem eles que é um partido originalíssimo, genuinamente português, e eu não consigo conceber maior insulto que se lhe possa fazer.

É um partido povoado de personagens camilianas de todas as tendências e inclinações: tecnocratas, liberais, plutocratas, social-democratas, populistas, fascistas, nacionalistas, regionalistas, reformistas ou conservadores. Agrega em sã camaradagem catedráticos, patos bravos, analfabetos, magarefes, grandes industriais, literatos, advogados de província e cantores pimba.

As diversas facções odeiam-se mutuamente e não fazem segredo disso. Lançam uns sobre os outros, em público e em privado, os insultos mais torpes que se possa imaginar, depois abraçam-se e formam governo como se nada fosse.

Nada disso é importante, desde que seja possível repartir o poder a bem de todos. Enquanto conservam o poder, tudo se vai resolvendo; quando o perdem, falta-lhes o ar, agitam-se constantemente, têm pesadelos horríveis, juram que o mundo vai acabar amanhã. Porque crêem que o poder lhes pertence por direito divino e não concebem que o mundo possa ser de outro jeito.

Eles são o Portugal secular medíocre, manhoso, negocista e autoritário que já cá estava antes de nós e planeia continuar a estar quando todos tivermos desaparecido.

O PSD na verdade não é nada, e só por isso pode fingir ser tudo o que se queira, conforme as conveniências do momento. É o partido sem qualidades, sempre pronto a exibir uma nova máscara, a tirar um novo coelho da cartola, desde que assim o exijam os superiores desígnios da vontade do poder.

Eles ousaram levar Santana a São Bento e agora ousam, com o mesmo descaramento, sugerir que foi só um pequeno desvio de percurso e que, por eles, estão dispostos a retomar a emissão dentro de momentos com outros personagens e outro encenador. Desculpem qualquer coisinha, e siga a marcha.

Qualquer loucura lhes parece razoável sem sequer se aperceberem das figuras que fazem, porque a eles tudo lhes deve ser permitido. Congresso extraordinário um mês após o anterior. Cavaco candidato a primeiro-ministro. Ou, se não for ele, Manuela Ferreira Leite. Ou então Marcelo, ou Marques Mendes, ou qualquer outra coisa.

Faz de conta que Santana, o que levou para S. Bento a malta da discoteca, nunca existiu. Nem Durão, o iluminado que trocou o compromisso com o eleitorado por um lugar confortável em Bruxelas. Nem a promessa do choque fiscal, transformada na subida do IVA. Nem o aumento efectivo do déficite orçamental, apenas camuflado pela delapidação do património estatal. Nem o aumento da dívida pública que levou à degradação do rating da República. Nem o esquecimento da reforma da administração pública. Nem a desorganização do sistema escolar. Nem a promiscuidade entre interesses públicos e privados. Nem a entrega directa de pastas governativas a representantes dos interesses tutelados.

É possível que desta vez, no meio de tantas contorções, tenham acabado por se meter num beco sem saída. Mas é melhor estarmos preparados para tudo.

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