21.1.08

Mentir é pecado



Paul Feyerabend (na foto, pouco tempo antes da sua morte, em 1994) afastou-se do círculo de Karl Popper (Sir para os amigos) quando concluiu que a tentativa de circunscrever a actividade científica a uma metodologia definida por um conjunto de princípios, regras e procedimentos imutáveis coloca entraves inaceitáveis à investigação.

O estudo da prática científica ao longo dos séculos persuadiu-o de que as grandes descobertas só tiveram lugar porque os cientistas se permitiram ignorar um ou vários dos princípios metodológicos popperianos, comportando-se como oportunistas mais preocupados em marcar pontos nas polémicas em que se haviam envolvido do que em seguir os procedimentos considerados mais adequados pelas pessoas respeitáveis, filósofos da ciência incluídos.

O confronto entre Galileu e a Igreja serviu precisamente a Feyerabend para ilustar essa sua opinião. Embora hoje ninguém duvide de que Galileu estava certo, a verdade é que, na altura, a sua posição tinha pontos fracos, entre os quais a ausência de provas concludentes de que a luneta astronómica reflectia adequadamente a realidade. Como seria de esperar em quem parte de uma posição mais fraca, ainda por cima em contradição com muito do que à data se julgava saber sobre o ordenamento do Universo, Galileu recorreu a todos os truques de retórica ao seu alcance para valorizar a teoria heliocêntrica e desacreditar a posição do seu antagonista, no caso o Cardeal Belarmino.

Na ocorrência, Belarmino revelou-se frequentemente mais respeitador das boas regras da Razão (como aliás seria de esperar de um partidário de Aristóteles) do que Galileu, a quem convinha enfatizar certas observações empíricas parcelares. Vê-se por aqui que a passagem de Feyerabend citada por Ratzinger não visava apoiar Belarmino, mas apenas mostrar que, se Galileu se tivesse deixado embaraçar por pruridos popperianos, provavelmente teria perdido o debate.

Ora bem, foi neste contexto argumentativo que Feyerabend lançou a palavra de ordem do seu provocatoriamente chamado anarquismo epistemológico: "anything goes". Com isso pretendia apenas sublinhar que o único princípio metodológico que não corre o risco de inibir o crescimento da ciência consiste em deixar os próprios cientistas decidirem qual a estratégia de investigação mais adequada em cada momento.

Tudo isto permite entender que a invocação que Ratzinger fez de Feyerabend em apoio da sua polémica contra o Iluminismo não foi séria. Ou não entendeu o que ele escreveu (talvez por só conhecer os seus escritos em segunda mão) ou distorceu voluntariamente os seus pontos de vista. Pior ainda é pretender agora - quando, sendo Papa, não lhe dá jeito recordar o episódio - que, em 1990, se distanciou de Feyrabend, alegação que a leitura do texto da conferência não permite confirmar. Num julgamento pouco caridoso, talvez pudéssemos chamar a isto uma mentira, mas não é preciso irmos tão longe, não é verdade?

PS - Morre-se de frio no Metropolitano de Lisboa.

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