22.10.04

Esquerda, direita, um, dois, três

Conta-se que a distinção entre esquerda e direita emergiu quando, durante a Revolução Francesa, ao deliberar-se sobre o direito de veto do rei, a assembleia se dividiu em duas partes, cada uma das quais se arrumou para o seu lado.

Não duvido que a anedota seja genuína, mas acho que esconde mais do que revela. Em primeiro lugar, ela sugere que foi por puro acaso que se convencionou chamar esquerda à esquerda e direita à direita. Nada mais falso: a esquerda é, por natureza, algo que sai da norma, que não alinha pelos padrões estabelecidos, sendo legítimo suspeitar que oculte alguma perversidade. O normal é ser-se dextro, não canhoto. Podemos imaginar Deus ambidextro, nunca canhoto.

Esta conotação é inevitável, não um mero produto do acaso. É com razão, pois, que as pessoas de bem desconfiam que se oculta aqui uma ameaça contra a ordem estabelecida.

Mas isso nem é o mais importante. A questão não é que uns tenham ido para um lado e os restantes para o outro, mas que todos se tenham colocado no mesmo plano.

Durante milénios, a política opunha os de cima aos de baixo, sendo que só os primeiros, a bem dizer, participavam nela. O espaço político era, pois, vertical. A oposição entre direita e esquerda horizontalizou a política, sublinhando assim a igualdade fundamental de todos os intervenientes: não há, pelo menos à partida, nenhum lugar privilegiado.

Naturalmente, a distinção entre os de cima e os de baixo não foi abolida. Primeiro, porque o sufrágio universal só muito mais tarde foi introduzido. Segundo, porque, mesmo depois disso, a igualdade política continuou a coexistir com a diferenciação social entre os de cima e os de baixo.

Não admira, por isso, que o programa da esquerda tivesse sido, durante muito tempo, a completa horizontalização da sociedade.

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