28.10.04

Por linhas tortas

Esta história do Buttiglionne, em si mesmo apenas mais um dessa vasta galeria de tolos que a nova direita despudoramente nos impinge, tem que se lhe diga.

A Berlusconi dava-lhe jeito, por razões de política interna, meter na Comissão Europeia um amigo do Papa. A primeira coisa a notar é a originalidade da ideia, até porque o Vaticano não faz parte da União Europeia. A segunda é esta noção de que os Governos podem enfiar lá literalmente quem quiserem, porque a aprovação do Parlamento Europeu é suposta ser um mero pro forma.

Deu-se porém o caso de que, por diversas circunstâncias, a que não é alheio o novo estatuto recém adquirido pelo Parlamento, os deputados resolveram levar a sério o seu papel. Aparece um tótó a dizer que a homossexualidade é pecado, que as mães solteiras são más mães e que os imigrantes deveriam ser internados, e, de repente, toda a gente se apercebe de que o fundamentalismo já se instalara dentro de portas sem pedir licença, e ainda por cima dava-se ao luxo de gozar com o pessoal.

Era de mais, claro. Só um cego ou um comentador conservador português, habituado ao respeitinho da disciplina partidária, é que não via isto. Pôs-se a hipótese de afastar o sujeito, não propriamente por ser tolo, mas por defender posições manifestamente marginais e ofensivas no contexto do viver europeu contemporâneo tal como a esmagadora maioria de nós o entende.

Enquanto o Economist somava a favor do afastamento de Buttiglionne argumentos de peso, fazendo notar o papel que ele tem desempenhado na Itália a ajudar o primeiro-ministro a fugir aos tribunais, alguns católicos portugueses clamaram que estavam a ser perseguidos por delito de opinião. A partir de agora, já sabem, quando não votarem no PP estão a penalizá-lo por delito de opinião e, portanto, a impedi-lo de ir para o governo só por pensar como pensa. Perceberam?

Abro aqui um breve parêntese para fazer notar a surpresa genuína dos católicos portugueses. Eles estão habituados a ver o Papa a passear-se num carro inspirado no batmóvel, só que em branco, rodeado de multidões de betinhos a cantar músicas pimba e a agitar bandeiras, e imaginam que, lá por ser um sucesso de audiências, o catolicismo é hoje muito influente. Aperceberam-se agora subitamente que, se o lado folclórico de João Paulo II entretém, já as suas ideias repelem, e por isso, a bem dizer, a Igreja hoje não risca nada na sociedade europeia.

Mas adiante.

Pessoas habitualmente sensatas contestaram ao parlamento europeu o direito de fazer o que fez, porque pouca gente votou nele. Retomam assim a ideia, tão cara aos grupos extremistas, segundo a qual a abstenção é uma tomada de posição com tanta validade como o voto num partido, ou eventualmente com mais, se acaso for muito expressiva. Isto foi algo que me habituei a ouvir a Portas, nos seus tempo áureos, mas não a José Manuel Fernandes, Pacheco Pereira ou António Barreto, porque põe em causa os fundamentos da democracia representativa. Quem votou, votou; quem não votou, votasse.

Além disso, a atitude interventiva do Parlamento Europeu neste caso é elogiável a vários títulos. A principal razão porque pouca gente vota nas eleições europeias é porque está convencida de que isso não serve para nada. Se começar a acreditar que do seu voto resultarão efeitos políticos reais, muito mais gente começará a votar.

É por tudo isto que esta crise representou um passo em frente na emergência de uma cidadania europeia. Mesmo que, para escrever direito por linhas tortas, Deus tenha tranquilamente sacrificado alguém que abusivamente se apresentava em seu nome. E isso, bem vistas as coisas, também foi um progresso.

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