13.5.05

Nata azeda



Fiquei fascinado por uma canção passada na rádio e ouvi (ou julguei ouvir) o locutor identificá-la como pertencendo aos Cream. Dias depois dei de caras na loja com o Fresh Cream e comprei-o sem hesitar.

Chegado a casa percorri rapidamente todas as faixas, sem todavia descobrir aquela que me convencera a comprá-lo. Pior ainda, o estilo dos Cream não tinha qualquer semelhança com o da canção que eu procurava.

Superada a irritação, voltei a escutar o disco, agora com mais atenção. A pouco e pouco, o desapontamento foi sendo substituído pelo fascínio. Agradou-me instantaneamente a frescura daquele som que trazia os blues de volta para o centro do rock depois de anos de crescente mas nem sempre benvinda sofisticação.

Nessa tarde descobri Robert Johnson, a cujas gravações originais só muito mais tarde tive acesso, mas também Skip James e Howling Wolf. Para além, é claro, de Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker.

Nos anos seguintes os Cream lançaram mais 2,5 álbuns (Disraeli Gears, Wheels of Fire e Goodbye), e depois dissolveram-se.

Clapton gravou ainda um bom disco com Steve Winwood (Blind Faith), antes de se entregar de alma e coração às xaropadas por que hoje é conhecido. Jack Bruce colaborou com Carla Bley em Escalator Over the Hill, e em seguida saíu de cena. Quanto a Ginger Baker, iniciou tardiamente uma distinta carreira de jazzman.

Mas eis que, agora, alguém teve a peregrina ideia de voltar a juntar os Cream para uns quantos concertos ao vivo. Leio nos jornais que Jack Bruce está a recuperar de um transplante ao fígado, e que Ginger Baker sofre de artrite aguda. Sobre Clapton nem é bom falar, porque a doença é imaterial e não tem cura.

Quer dizer, um tipo acaricia durante décadas, com toda delicadeza que a memória consente, a recordação de alguns momentos de felicidade única, e eis que alguns desmiolados se julgam no direito de destruí-la assim, de um momento para o outro, em nome da nostalgia.

Da nostalgia, ouviram bem! Qual nostalgia, qual carapuça! A nostalgia (a verdadeira, é claro) não se alimenta de relíquias que, bem vistas as coisas, só servem para pôr em cheque a fantasia a troco de uma imprestável realidade que eu com todo o gosto me permito dispensar.

Afastem de mim esse cálice!

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