24.7.08

Contra o pensamento ocioso

"Já viste o carro novo dos do lado? No ano passado foram de férias para o Brasil; agora, diz que é um safari no Quénia. E ela, que só compra vestidos de marca? Não sei onde arranjam dinheiro para levarem esta vida..." O equivalente sofisticado desta tagarelice mesquinha é a crítica moralista ao endividamento das famílias portuguesas.

Por estes dias, toda a gente repete, com ar entendido, que os portugueses vivem acima das suas posses, mas eu gostaria que me explicassem que consequências práticas daí pretendem retirar.

É certo que, não sendo compensado pela entrada de investimento directo estrangeiro, o nosso défice da balança de transacções correntes assume enorme gravidade. Que fazer, então, para controlar os excessivos níveis de consumo e de endividamento dos particulares que contribuem para aumentá-lo? Assim, de repente, ocorrem-me algumas hipóteses: a) exortar os portugueses a pouparem mais; b) restringir a importação de bens não essenciais; c) agravar as taxas de juro; d) desvalorizar a moeda. Tudo excelentes ideias, porém, impraticáveis.

Insistir na ideia de que, se os portugueses se resignassem a consumir menos, o país entraria nos eixos é, nas actuais circunstâncias, uma piedosa intenção votada ao insucesso. Certos comentadores recusam-se a aceitar que algumas formas de ajustamento dos mercados são mais difíceis do que outras; mas todos sabemos que é mais fácil aumentar salários do que baixá-los, empregar pessoas do que dispensá-las e aumentar o consumo do que baixá-lo.

E se, em vez de batermos com a cabeça nas paredes, encarássemos antes a coisa de uma perspectiva igualmente verdadeira, mas incomparavelmente mais útil? E se, em vez de dizermos que gastamos acima das nossas posses, sublinhássemos antes que produzimos abaixo das nossas capacidades? Onde a primeira formulação cria um muro psicológico que fomenta o medo e paralisa a vontade, a segunda oferece uma orientação positiva e mobiliza o esforço colectivo. A forma como se diz as coisas tem consequências. Temos um problema de produtividade que não se deve, nem a trabalharmos pouco, nem a investirmos de menos, antes a tirarmos medíocre partido dos recursos produtivos, em boa parte por os concentrarmos em actividades económicas de reduzido potencial. A boa notícia é que, na presente década, a nossa estrutura produtiva tem vindo a sofrer uma rápida transformação, sem paralelo desde os anos 60.

Em poucos anos, a natureza do turismo alterou-se e os têxteis foram substituídos, na liderança das exportações, por máquinas e aparelhos eléctricos e serviços às empresas. A balança tecnológica tornou-se positiva. Em decorrência, o país conquistou quotas de mercado, apesar de uma evolução pouco favorável dos custos salariais unitários. O défice externo, agora deteriorado por efeito da crise internacional, reduziu-se de forma progressiva, embora insuficiente. Podemos confiar nas empresas e nos mercados para completarem esse ajustamento, que políticas erradas no passado atrasaram. Mas deveríamos questionar se o Estado português estará a fazer tudo o que deve para facilitar as mutações em curso.

Os desafios superam-se potenciando a capacidade transformadora das nossas forças, não carpindo as fraquezas. É mais produtivo mobilizar as pessoas para fazerem coisas do que para se queixarem. É mais fácil mobilizá-las com uma visão coerente do futuro do que com ameaças de empobrecimento e resignação.

Entre nós, o nível do debate económico é frequentemente rebaixado por insistentes prédicas acerca dos vícios e virtudes dos nossos concidadãos, porque esse tipo de abordagem não exige nem estudos nem conhecimentos especializados, apenas requer capacidade retórica.

A mudança de perspectiva que recomendo não equivale a privilegiar o optimismo sobre o pessimismo, mas a valorizar o pensamento produtivo em detrimento do pensamento ocioso.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de ontem.)

5 comentários:

Daniel disse...

«Entre nós, o nível do debate económico é frequentemente rebaixado por insistentes prédicas acerca dos vícios e virtudes dos nossos concidadãos, porque esse tipo de abordagem não exige nem estudos nem conhecimentos especializados, apenas requer capacidade retórica.»

Muito bom (isto e o resto, já agora).

Sibila Publicações disse...

"E se, em vez de dizermos que gastamos acima das nossas posses, sublinhássemos antes que produzimos abaixo das nossas capacidades? Onde a primeira formulação cria um muro psicológico que fomenta o medo e paralisa a vontade, a segunda oferece uma orientação positiva e mobiliza o esforço colectivo."

Concordo plenamente. Ocorre que a imprensa em geral prefere fazer eco da formulação habitual, a que o seu público está acostumado.
Isso tem de ser dito e repetido.

jj.amarante disse...

É isso mesmo. Eu apontaria ainda a necessiadde de perseverar. Há uns artistas que julgam que desde que tenham uma vontade política muito intensa vai tudo correr bem e quando ocorre algum percalço ficam muito desanimados. Além da vontade política é preciso o esforço continuado de muita gente durante um tempo considerável.

Anónimo disse...

Bom post!

MP-S

joshua disse...

Mas formular uma mudança de retória para uma mudança de espírito, do pensamento ocioso para o pensamento produtivo, continua a ser retórica.

Ora, na verdade, não se muda a substância de nada com retórica anti-retórica. É preciso e bastará somente a eloquência da Realidade vergastando a psique geral.

PALAVROSSAVRVS REX