13.3.04

Por um estoicismo activista

Anda um sujeito muito tranquilo na sua vidinha, precupado com o relatório que tem que entregar, o curso que vai começar, a investigação que não há forma de avançar, e eis que a explosão de uma sucessão de bombas em Madrid o arranca destas triviais mas honestas preocupações e o força, quer queira quer não, a cuidar de assuntos que tocam no cerne dos grande problemas do mundo de hoje.

Aprecio o ponto de vista daqueles que dizem que o terrorismo só pode ser combatido com eficácia se atacarmos as suas causas, mas não entendo bem o que querem dizer. Por vezes, sugerem que isso significa retirar as tropas americanas do Iraque, desmantelar os colonatos israelitas na margem ocidental, instaurar uma ordem internacional mais justa, e por aí afora.

Descontando o facto de que nenhum desses problemas é tão fácil de resolver quanto possa parecer, o equívoco essencial reside em pensar-se que essas são as causas do terrorismo internacional. Não são: se tudo isso fosse feito, não tenham dúvida de que os terroristas exigiriam em seguida o controlo sobre os poços de petróleo do Texas ou a devolução da Andaluzia. Não só porque esses gestos seriam entendidos como rendições, como, sobretudo, porque o fundamento da sua actuação não é, de facto, nenhum propósito político preciso.

Muita gente parece pensar, e alguma afirma-o mesmo, que a origem do terrorismo radica na pobreza e na opressão a que a maioria da humanidade se encontra hoje submetida. Daí até à condenação sem nuances da chamada globalização vai apenas um passo.

A opressão extrema dá origem a fenómenos de resistência extrema, incluindo actos terroristas, mas não ao terrorismo indiscriminado como este a que estamos a assistir. Para ser eficaz como arma política, o terrorismo tem como funcionar como uma ameaça credível contra aqueles que designa como adversários. Assim, sendo, exerce-se sobre alvos bem determinados, sejam eles pessoas individuais (como muitas vezes fez a ETA) ou grupos humanos bem determinados (como faz o Hamas em Israel). Sob esta forma, o o terrorismo é conhecido desde a mais remota antiguidade.

Mas o terrorismo indiscriminado não é -- repito: não é -- apenas uma forma de luta política particularmente perversa. Pura e simplesmente, não é uma forma de luta política.

Devemos, pois, tomar a sério a ideia segundo a qual na origem destes fenómenos estão certas formas de paranóia assassina. Lidamos aqui com psicopatas de tipo particular que, em consequência do poder da tecnologia actual e da liberdade de circulação de pessoas e ideias, se tornaram particularmente ameaçadores para a sociedade mundial.

Nem os governos nem os políticos podem dizê-lo, é claro, mas este tipo de terrorismo é um pouco como os tremores de terra ou a sinistralidade rodoviária. Não podemos verdadeiramente evitá-los, embora possamos adoptar políticas preventivas, de algum modo semelhantes à construção anti-sísmica, orientadas para a minimização dos seus efeitos.

Esta conclusão resulta precisamente do carácter indiscriminado destes atentados. É possível proteger razoavelmente os chefes de estado, os principais edifícios onde se encontram sedeados os órgãos do poder e o quartéis. Mas não é possível proteger milhões de cidadãos que podem ser atacados nos transportes públicos, nos locais de trabalho, em locais de lazer, em suas casas -- em qualquer parte, enfim.

Ao contrário do que se diz, para levar a cabo estes ataques não é necessária qualquer sofisticação ou capacidade especial de planeamento. Basta combinar algum conhecimento de explosivos com uma dose suficiente de desequilíbrio mental.

Paradoxalmente, quanto mais acentuarmos as medidas de segurança destinadas a proteger-nos de ataques terroristas, mais indiscriminados eles se tornarão. Porque será muito difícil atacar a equipa inglesa de futebol durante o Euro 2004, mas muito fácil lançar uma bomba entre a multidão que se dirige a um estádio para assistir a um desafio dessa mesma equipa minutos antes do jogo.

Não podemos por conseguinte impedir em absoluto a ocorrência de actos terroristas como aquele que na passada quinta-feira teve lugar em Madrid, mas podemos talvez condicioná-los e controlar a sua escala. Estas circunstâncias aconselham uma atitude de princípio a que, à falta de melhor designação, chamarei estoicismo activista.

Tem-se dito -- e é verdade -- que a confiança nos poderes da razão é posta em cheque com acontecimentos sumamente irracionais destas proporções e consequências. Acredito que devemos aceitar esse desafio, em vez de reagirmos de forma igualmente irracional, sob pena de nos resignarmos à derrota progressiva de todos os valores em que acreditamos.

Não sei se recordam de que, logo a seguir ao 11 de Setembro, ganhou terreno a opinião segundo a qual uma das formas mais eficientes de combater o terrorismo seria a eliminação dos paraísos financeiros off-shore que escapam a todo e qualquer controlo institucional. Curiosamente, nunca mais se voltou a falar disso.

A minha tese é simples: as formas mais eficientes de combater o terrorismo foram já claramente enunciadas por diversas pessoas nos últimos anos. Trata-se apenas de articulá-las numa política integrada, colocá-la na agenda das principais organizações internacionais e pressionar a sua implementação. De passagem, e como requisito prévio para a sua implementação, proceder-se-á à necessária reforma das Nações Unidas, a qual passa pela penalização, indo até à expulsão, de países que não merecem a confiança da comunidade internacional, em simultâneo com o reforço dos seus poderes.

O terrorismo internacional indiscriminado -- sublinho bem que é deste que estou a falar -- não é um fenómeno racional resultante de causas claramente identificáveis. Como tal, não podem ser combatidas as suas raízes políticas, muito menos através de uma estratégia de apaziguamento que alguns ingenuamente sugerem.

Mas o terrorismo internacional não pode subsistir, pelo menos com a sua força actual, se não beneficiar de certas condições facilitadoras. Ñós não queremos questionar algumas dessas condições, tais como os direitos e garantia dos cidadãos, a liberdade de expressão, a liberdade de movimentos, o acesso à internet, etc.

Mas podemos e devemos questionar a liberdade de circulação dos capitais tal como hoje ocorre, que nenhum princípio de sã gestão económica recomenda. Tal como podemos e devemos questionar certas instituições cujo traço distintivo é a protecção de actividades ilegais. Essas actividades só podem existir porque a comunidade internacional não dispõe, ou não quer dipor, de meios para impor a sua vontade a países e interesses particulares que prosperam à custa dessas falhas de regulação.

Tal como devem ser chamados à pedra estados pária que prosseguem programas de fabrico de armas de destruição massiva ou dão cobertura e treino a terroristas, devem também ser submetidos a escrutínio todos aqueles que dão guarida ao crime organizado internacional.

Chegados aqui, é indispensável referir o problema central de tudo isto. Ninguém duvida seriamente de que a grande fonte de financiamento do terrorismo é o narcotráfico. Toda a actividade do regime talibã era, como se sabe, suportada pelo comércio do ópio.

A guerra contra a droga é, por conseguinte, a vertente decisiva da guerra contra o terrorismo. Uma e outra estão a ser perdidas porque nem a guerra de Clinton contra a droga nem a guerra de Bush contra o terrorismo assentam em pressupostos racionais.

A únida forma segura de combater o crime organizado é pôr termo ao proibicionismo como esteio fundamental do combate à toxicodependência. A produção, a comercialização e o consumo da droga devem ser total e completamente despenalizados. De preferência, os estados nacionais devem intervir nesse processo, não só para assegurar a protecção e o tratamento dos toxicodependentes, como para secar a principal fonte de financiamento do crime organizado e, por consequência, do terrorismo internacional.

Estas ideias, como digo, não são novas. Muitas delas já foram discutidas durante suficiente tempo com suficiente profundidade para nos sentirmos razoavelmente seguros da sua correcção e viabilidade.

Por enquanto só existe um suposto plano de combate ao terrorismo -- que é o da direita. Em resumo, ele propõe-se combater a violência com mais violência e, a prazo, ameaça pôr em causa os direitos e as liberdades fundamentais dos cidadãos. Na verdade, como o ilustra a invasão do Iraque, não combate eficazmente o terrorismo e agrava ainda mais a situação. Temos boas razões para acreditar que, para essa direita, o terrorismo é apenas um pretexto para subverter as instituições democráticas e impor uma agenda política orientada pelos interesses dos poderosos.

Um ano e meio depois do 11 de Setembro é tempo de as coisas começarem a mudar.

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