31.1.05

Aritmética e miolos

Os telejornais de ontem informaram, ao fim da tarde, que a taxa de participação nas eleições iraquianas foi da ordem dos 60%.

José Manuel Fernandes refere-se hoje em editorial à «grandiosa surpresa de uma afluência às urnas que nenhum especialista, nenhum responsável e, sobretudo, nenhum jornalista, se arriscava a prever.»

Ora ontem, na página 2 do mesmo Público, eram adiantadas as seguintes previsões:

o Dos xiitas (entre 60 a 65% da população total), estimava-se que votassem 87%
o Dos sunitas (20% da população total) estimava-se que votassem 10%
o Dos curdos (entre 10 a 15% da população total) estimava-se que votassem 80%
o Dos outros (incluindo cristãos e turcomanos, 5% da população total), não se sabia que proporção votaria

Fazendo uma média ponderada, chega-se a uma participação prevista de 71,6%. Muito mais, pois, do que os 60% agora anunciados. Como se vê, às vezes um bocadinho de aritmética ajuda a esclarecer muita coisa.

Pelos vistos, José Manuel Fernandes não tem tempo para ler o seu jornal. O que é pena, porque - sou eu quem lho garanto - até é um bom jornal.

Vimos os números. Vamos agora usar os miolos.

Coragem é votar quando existe uma enorme pressão social para que não votemos. Ou, alternativamente, coragem pode ser não votar quando existe uma enorme pressão social para que votemos.

Ora, os xiitas votaram porque o clero xiita os mandou votar e porque acreditam que conseguirão desse modo traduzir a superioridade numérica da sua religião numa supremacia política. Algo perigoso, como se compreende, porque não votaram para fazer prevalecer um ponto de vista mas para esmagar os adversários - e isso não é democracia.

E os sunitas não votaram porque o clero sunita os mandou não votar e porque acreditam que, com esse boicote, lograrão des-legitimar o novo poder político maioritariamente xiita. Coisa perigosa, como se vê - porque implicitamente rejeitaram o poder emergente.

Comprovadamente corajosos corajosos, só mesmo os 10% de sunitas que terão votado contra as instruções dos seus líderes. Mas esses serão apenas 2% da população, uma percentagem mais consentânea com as duras exigências do heroísmo.

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